Veneza: a esquina mágica da história

Uma colega de trabalho, há muitos anos, posava de milionária, mas se revelou alienada. Ia a lugares sem noção de onde ia, ou de onde estava.
Ouvíamos, entre a admiração e a inveja, os relatos das magníficas viagens que fazia, na companhia do marido "Barão". Lá se vão mais de duas dezenas de anos...
Um belo dia, ao discorrer sobre a sujeira e confusão do Cairo, Egito, comentou que jamais voltaria lá. Argumentou-se então que, além dos museus excepcionais (mundialmente reconhecidos), e de alguns locais específicos, pouco mais havia o que ver no Cairo, uma grande cidade turbulenta.
O passeio no Nilo e a visita às Pirâmides, especialmente se houvesse um show noturno, de luzes e música, seriam mais emocionantes. No que a moça perguntou: "que Pirâmides"?
Outro episódio se refere à Veneza. Um conterrâneo médico, colega de ginásio, boa alma, já falecido, comentava que há anos não lia livro algum.
Preferia assistir aos filmes correspondentes. Se dava por satisfeito. Ao discorrer sobre Veneza, sentenciou, enfaticamente: "um lugar que tem muita loja e pouco bar".
É possível que Veneza não seria apenas única, mas também mágica. O Carnaval de Veneza, comemoração de rara beleza, revela seu espírito, mostrando o que que é: uma sobreposição de máscaras magníficas e de trajes impactantes.
Mas como toda mulher "mascarada", e naturalmente misteriosa, há que se conhecer suas manhas para que ela revele, pelo menos, uma de suas faces.
E, então, escravize seu coração com os encantos que apresenta. Uma vez cativo, resta apenas se levar pela paixão.
A Catedral de São Marcos, de magnífico estilo arquitetônico, único e incomparável, seria um resumo, exuberante, do que seria toda a cidade de Veneza.
Os detalhes podem ser vistos, admirados e comentados ao longo de uma vida. A partir daí as maravilhas se sucedem, em cada ponte, em cada esquina, em cada edifício.
Mas, para se compreender suas belezas, há que se percorrer seus segredos, ouvir seus sons, sussurros e suspiros, delicadamente...
Alguns se apresentam sob a forma de alamedas amplas, bem cuidadas e ajardinadas, que abrigam um pequeno porto para o "vaporetto".
Ladeadas por moradias centenárias, muito bem conservadas: que nos colocam não apenas em outro tempo, mas em outro mundo.
A vetusta senhora, conhecida por Veneza, é mais do que uma cidade histórica. Seria uma das principais esquinas do tempo, nos mostrando, além de suas inúmeras pontes e ilhas, uma história em cada ângulo, especialmente as indescritíveis conexões que construiu entre Ocidente e Oriente.
Direcionando para si maravilhas. Não se fez de rogada: se propôs mudar o mundo. E mudou. Há um episódio histórico, durante as Cruzadas, protagonizado por Veneza e sua monumental frota naval, quando a República Sereníssima de Veneza se mostrou, também, "malandríssima".
Foi durante o evento denominado "Quarta Cruzada", entre os anos de 1202 e 1204. Não haveria como separar as Cruzadas do Renascimento, este das Cidades Estado italianas e o resultado, desse processo, do presente mundo moderno e globalizado. Veneza, nesse "pacote", desponta com inquestionável majestade.
A "Quarta Cruzada" deu-se quando Saladino, o grande líder do Islã, já havia retomado Jerusalém - e grande parte das cidades e territórios cristãos, no Oriente Médio.
Essa mobilização se propunha retomar a Cidade Santa, e contava com cerca de 30 mil cavaleiros cruzados europeus, muitos deles francos, mas majoritariamente germânicos.
Veneza se dispôs a transporta-los até à Terra Santa, bem como as provisões e equipamentos atinentes à campanha, mediante o devido pagamento.
Entretanto, tendo recebido uma série de polpudas vantagens, e concessões comerciais, Veneza havia firmado um acordo com os muçulmanos, comprometendo-se a não transportar nenhum cruzado para o Oriente Médio. Isso já durava anos.
E, então, diante da proposta da "Quarta Cruzada", resolveu cumprir com ambos os contratos. Tendo em vista que os cruzados não tinham recursos para pagar o transporte, Veneza terceirizou os serviços dos cruzados, de modo a invadir e saquear Constantinopla (ou Bizâncio), Capital do Império Romano do Oriente.
A ideia seria se apossar de seus vultosos tesouros e se apoderar de suas rotas comerciais. Em seguida, a frota deixaria a tropa na Terra Santa.
"Quid pro quo". Assim foi feito. Invadiram, saquearam Constantinopla e por lá ficaram por mais de cinquenta anos. Sob o comando de Veneza, a "Sereníssima".
Desse modo, a "Quarta Cruzada" não se realizou completamente, nem cumpriu seus objetivos originais. Jerusalém jamais retornou para o domínio dos cruzados e Veneza cumpriu ambos os contratos.
Satisfizeram cristãos e muçulmanos. E, principalmente, os interesses da Sereníssima. Pedro Malasartes não faria melhor.
* Marco Antônio Andere Teixeira é historiador, advogado, cientista político (UFMG), pós-graduado em Controle Externo (TCEMG/PUC-MG), Direito Administrativo (UFMG) e Ciência Política (UFMG). E-mail: marcoandere.priusgestao@gmail.com
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