Mississippi em Chamas reacende debates urgentes sobre o racismo
Clássico de Alan Parker retorna ao streaming, lembrando a brutalidade do racismo e a luta por direitos civis com atuações marcantes de Gene Hackman e Willem Dafoe

Em um momento em que as discussões sobre racismo e justiça social ganham cada vez mais relevância, o Amazon Prime Video relança em seu catálogo "Mississippi em Chamas" (1988), um filme que, mesmo décadas após seu lançamento, mantém uma pungente atualidade.
Dirigido por Alan Parker, o longa-metragem não é apenas um thriller policial, mas um doloroso retrato dos conflitos raciais no sul dos Estados Unidos durante os anos 1960.
O filme se inspira em um fato histórico real e chocante: o desaparecimento e assassinato de três ativistas dos direitos civis - James Chaney, Andrew Goodman e Michael Schwerner - em Neshoba County, Mississippi, em junho de 1964.
Dois deles, Goodman e Schwerner, eram brancos, e Chaney era negro. A brutalidade do crime e a omissão das autoridades locais chocaram o país e expuseram a face mais cruel da segregação e da violência da Ku Klux Klan.
A trama de "Mississippi em Chamas" acompanha dois agentes do FBI, Rupert Anderson (Gene Hackman) e Alan Ward (Willem Dafoe), enviados para investigar os desaparecimentos. A diferença de abordagens entre os dois agentes é um dos pontos altos do filme.
Anderson, um ex-xerife de uma pequena cidade sulista, conhece as engrenagens do preconceito e da violência local, e sua abordagem é mais pragmática e, por vezes, desafia os protocolos do FBI.
Ward, por sua vez, é um idealista, metódico e rígido em seu cumprimento à lei, representando a face mais jovem e talvez ingênua da justiça federal diante de um cenário de ódio entranhado.
As atuações dos protagonistas são magistrais e essenciais para a força do filme. Gene Hackman entrega uma performance memorável como o agente Anderson. Sua capacidade de transitar entre a astúcia, a frustração e uma raiva contida, mas poderosa, é palpável.
Ele encarna a figura do homem que, mesmo sendo parte do sul, se choca com a selvageria de seus conterrâneos. É uma atuação que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator e que permanece icônica por sua autenticidade e profundidade.
Willem Dafoe, no papel do agente Ward, complementa Hackman de forma brilhante. Sua postura mais contida e sua crença inabalável nos procedimentos legais contrastam com a abordagem de Anderson, criando uma dinâmica tensa e fascinante entre os dois.
A evolução de seu personagem, que gradualmente percebe a complexidade e a violência do ambiente, é sutil e eficaz.
Além dos protagonistas, o elenco de apoio é igualmente forte. Frances McDormand, como a esposa do vice-xerife, tem uma atuação impactante, revelando a teia de cumplicidade e medo que envolvia a comunidade. Seu Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante foi mais do que merecido.
Alan Parker é um mestre em criar atmosferas. Em "Mississippi em Chamas", ele utiliza a paisagem sulista não apenas como cenário, mas como um personagem por si só.
O calor opressivo, a poeira, os pântanos e as estradas isoladas contribuem para uma sensação de claustrofobia e perigo iminente.
A fotografia de Peter Biziou, que ganhou um Oscar por seu trabalho no filme, é fundamental para isso, com o uso de tons amarelados e alaranjados que evocam a tensão e a podridão moral daquele ambiente.
Embora seja um drama com forte carga social, Parker impõe um ritmo de thriller policial que mantém o espectador engajado.
A investigação do FBI, com suas reviravoltas e confrontos, é conduzida com uma urgência crível. Ele sabe dosar os momentos de diálogo e investigação com as explosões de violência e perseguição, criando uma narrativa que avança implacavelmente rumo à verdade.
Parker não se esquiva de mostrar a brutalidade do racismo. As cenas de violência, embora não sejam gratuitas, são chocantes e eficazes em transmitir o horror e a crueldade dos atos da Ku Klux Klan.
Ele utiliza a violência para sublinhar a barbaridade do preconceito e o nível de desumanidade que os ativistas e a população negra enfrentavam. A cena de abertura, com o assassinato dos ativistas, já estabelece o tom sombrio e perigoso do filme.
É importante mencionar que a direção de Parker no filme gerou algumas críticas. Alguns historiadores e ativistas do movimento pelos direitos civis argumentaram que o filme "branqueou" a narrativa, focando demais nos agentes brancos do FBI como os "salvadores" e minimizando o protagonismo e a resistência da própria comunidade negra.
Parker, em sua defesa, argumentou que um filme com protagonistas brancos seria mais facilmente financiado e distribuído por Hollywood na época, e que seu objetivo era expor o racismo e a violência, mesmo que através de uma lente específica.
Independentemente dessa crítica, a forma como Parker retrata a inércia, o medo e a cumplicidade da população branca local é um ponto forte da direção. Talvez, gere tanta indignação quanto o ódio gratuito sofrido pelos negros.
Em resumo, "Mississippi em Chamas" é uma imersão visceral em um período sombrio da história americana, utilizando uma fotografia poderosa, um ritmo tenso de thriller e performances excepcionais para entregar uma mensagem contundente sobre o racismo e a busca por justiça.
* João Gabriel Pinheiro Chagas é jornalista e diretor do Jornal da Cidade. E-mail: joaogabrielpcf@gmail.com
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