Mulheres em silêncio: o cuidado que adoece

Out 30, 2025 - 18:00
Mulheres em silêncio: o cuidado que adoece

A sobrecarga feminina, a violência de gênero e a desigualdade social têm deixado marcas na saúde mental das mulheres poços-caldenses. 

Um retrato local de uma realidade que clama por empatia e por políticas públicas eficazes. 

Maria*, 38 anos, dedica-se arduamente a um emprego em uma padaria durante todo o dia. Ao retornar para casa, ainda se vê na obrigação de cuidar dos filhos, da mãe idosa e das incessantes tarefas domésticas. 

Dorme escassamente, vive em constante fadiga e sente que o dia nunca é suficiente. Ela é uma entre inúmeras mulheres de Poços de Caldas que suportam o peso invisível da desigualdade , uma sobrecarga que tem causado profundas marcas na saúde mental feminina. 

A narrativa de Maria não é uma exceção isolada. Dados locais revelam que a vulnerabilidade social das mulheres na cidade transcende a mera falta de oportunidades: ela se manifesta em formas de ansiedade, depressão, temor e esgotamento emocional. 

A chamada “dupla jornada” , o trabalho fora de casa somado às responsabilidades domésticas, ainda é a realidade de grande parte das mulheres poços-caldenses.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres dedicam em média 21 horas semanais ao cuidado de pessoas e do lar, enquanto os homens gastam cerca de 11 horas.

Essa diferença, citada em evento local sobre equidade de gênero, revela um cenário de trabalho invisível e não remunerado, que contribui para o desgaste físico e emocional. 

Em Poços de Caldas, o impacto dessa sobrecarga aparece nas filas de atendimento dos serviços públicos de saúde mental. 

Cuidar de todos, mas não ter tempo para cuidar de si, é uma realidade que se repete em muitas casas da cidade. Outro fator que pesa na saúde mental das mulheres é a violência de gênero. 

Em 2024, Poços de Caldas registrou 252 medidas protetivas para mulheres vítimas de violência doméstica. Apenas nos dez primeiros dias daquele ano, 41 casos de agressão foram registrados , números alarmantes para um município de médio porte. 

A cada caso de violência, há uma mulher tentando reconstruir a própria vida. A exposição a agressões físicas, psicológicas ou patrimoniais costuma gerar traumas duradouros, que se manifestam em forma de medo constante, isolamento, ansiedade e até transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). 

A falta de apoio emocional e o medo de denunciar agravam o problema, fazendo com que muitas permaneçam em ciclos de sofrimento. 

O silêncio, nesses casos, é uma forma de sobrevivência - mas também um gatilho para o adoecimento. Poços de Caldas tem buscado fortalecer sua rede de proteção às mulheres. 

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) oferece apoio psicológico, social e jurídico para vítimas de violência. 

Na saúde pública, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) registraram, apenas no primeiro quadrimestre de 2024, 604 acolhimentos diurnos, 865 atendimentos individuais e 1.259 atendimentos em grupo. Esses números revelam o quanto a procura por cuidado mental é alta na cidade. 

Em 2023, a Câmara Municipal também aprovou um projeto que garante companhamento psicológico a gestantes e puérperas, reconhecendo a importância da saúde mental no período materno. 

São iniciativas que indicam avanços, mas ainda insuficientes diante da dimensão da demanda. Outro aspecto da vulnerabilidade feminina é a falta de autonomia financeira. 

Muitas mulheres continuam dependendo economicamente de companheiros ou familiares, o que as torna mais suscetíveis a permanecer em relações abusivas ou a enfrentar dificuldades para buscar ajuda. 

Além disso, a baixa presença de mulheres em cargos de liderança e espaços de decisão reforça o sentimento de invisibilidade social e limita as possibilidades de transformação. Esses fatores, combinados, produzem um ciclo difícil de romper: a desigualdade social alimenta o sofrimento mental, e o adoecimento emocional, por sua vez, dificulta o rompimento com situações de vulnerabilidade. 

Para mudar esse cenário, é preciso ir além do acolhimento emergencial.Especialistas apontam que Poços de Caldas deve:

• Ampliar o acesso gratuito a serviços psicológicos, com atendimento específico para mulheres em situação de vulnerabilidade.

• Investir na autonomia financeira feminina, com capacitação profissional e programas de incentivo ao empreendedorismo.

• Valorizar o trabalho de cuidado doméstico, reconhecendo sua importância social e promovendo maior equilíbrio entre homens e mulheres.

• Fortalecer as campanhas de prevenção à violência, com ações educativas e políticas públicas de longo prazo.

Essas medidas não apenas tratam os sintomas, mas atacam as causas da vulnerabili-dade social que afetam a mente e o corpo das mulheres. 

A vulnerabilidade social das mulheres em Poços de Caldas não é uma abstração, ela está nas casas, nas ruas e nos postos de saúde. 

É um problema coletivo, que exige atenção de toda a sociedade. Enquanto as mulheres continuam sustentando o cotidiano da cidade, é urgente que a cidade sustente o direito delas ao cuidado, à saúde mental e à dignidade.

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

* Cristiane Fernandes é doutoranda em Psicologia, pedagoga e educadora musical 

 

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