Conta Comigo, Rullyan

O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica sobre Rullyan Carlos de Assis

O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica sobre Rullyan Carlos de Assis, falecido recentemente e que foi seu amigo de infância.

Ele tinha a mesma idade que tenho. Morávamos no aprazível Marçal Santos, bairro acanhado entre as avenidas Champagnat e João Pinheiro, em prédios construídos pelo BNH – espécie de Minha Casa, Minha Vida da ditadura – durante os anos 1970, década em que nascemos.

Dois enclaves de classe média baixa em local predominantemente de média alta. Eu residia no Beta e Rullyan no Alfa; conheci-o por meio de nosso amigo em comum e seu vizinho Roberto Fernandes Júnior, hoje bancário na Caixa. Entre meados e fim dos anos oitenta, na pré-adolescência, jogávamos bola quase todo dia na Berilo, a “rua de baixo” do bairro. No futebol de rua a regra do “cinco vira, dez acaba” levava a seguidas partidas animadas.

Os times se desmanchavam no jogo seguinte para formarem outros combinados, nos quais os adversários de minutos antes logo se irmanavam. O que não impedia algumas brigas, mas não me recordo de nenhuma que não tenha sido superada já no dia seguinte, quando muito.

De todos os que estavam sempre lá jogando – eu, meu irmão Eurico, Rodrigo Passos, Fred Pinheiro, Daniel Zingoni, Evandro Godoy, Márcio de Melo, Mário Gimenez Júnior, Paulo Augusto Rodrigues, o já citado Roberto e muitos outros moleques dos arredores – o que me lembro do Rullyan é de ser alguém muito na dele, nunca se envolvendo em alguma treta. A não ser uma cabulosa, não relacionada às peladas.

Hoje concordo com a diretora da escola na qual estudava: uma rematada estupidez é guerrinha de ovo no carnaval. Não vejo mais por aí, espero que seja um costume superado. Mas era uma constante nos anos 1980 entre a molecada. Quem estava de bobeira na rua podia ser atingido por algum desconhecido. Ela chamava a atenção para o desperdício de alimentos; no entanto, vi que podia gerar algo pior do que isso e o aborrecimento de trocar as roupas.

Combinamos de fazer nossa própria guerra de ovos. Sim, éramos garotos desajuizados. E achávamos que não éramos. O pessoal do edifício Alfa, da rua Bauxita, contra o do Beta, da rua Platina. O campo de batalha ajustado foi justamente a Berilo, palco de disputas mais saudáveis. O acordo era um número limitado de ovos, salvo engano. A fronteira próxima à rua Ouro, no meio do caminho. Não havia trincheiras. Cara a cara, a alguns poucos metros, nos atacávamos.

Driblávamos os projéteis e eles se espatifavam no chão. Então meu irmão teve uma ideia que lhe pareceu genial: fazer algo como um saque Jornada nas Estrelas, do Bernard, herói da geração de prata do vôlei – isto me ocorreu agora, ele não disse isso à época. O Eurico arremessou um ovo para o alto, muito alto. Foi um ataque bem-sucedido. Os adversários fitavam o céu, para não ser atingidos. O Rullyan recuou alguns passos. Erro de cálculo. Cataplau! Foi direto no olho dele; o esquerdo, se bem me lembro. Ele mal conseguia abri-lo; o ovo sequer quebrou no rosto dele, mas sim no chão.

Ficou roxo como se tivesse tomado um soco de gorila. Seguiu-se o caos. Preocupação, brigas, acusações. E muita apreensão. Típico rolo pré-adolescente. Mais uma traquinagem para o currículo de rua. O medo de algum imbróglio superveniente logo desvaneceu. O Rullyan não queria contar em casa que se envolveu numa guerra com ovos. Para minha surpresa, pois não éramos próximos, não queria implicar meu irmão em nenhuma confusão. Procurou-nos para nos tranquilizar.

Contou, muito calmamente, que se justificou com os pais dizendo que havia brigado na escola e que não contaria com quem foi. Por alguma razão que desconheço, era algo menos grave aos olhos deles do que o ocorrido. Creio que não lhe traio a memória ao trazer à tona essa mentirinha social, que o protegeu e ao meu irmão. Pelo contrário. Nem eu havia defendido meu irmão imediatamente e os garotos do edifício Alfa foram injustos com ele.

Afinal, era o combinado; sabíamos dos riscos, mas os subestimamos. Ao longo do tempo fui perdendo o contato. A última vez que conversei de fato com Rullyan foi nos anos noventa. Entretanto, sempre nos víamos na rua. Chegamos a morar no mesmo bairro recentemente, do outro lado da cidade; com frequência nos cumprimentávamos de manhãzinha, quando ia passear com meus cachorros.

De Poços de Caldas, abatido por uma doença rara, Rullyan Carlos de Assis fez uma campanha nacional de cadastramento de doação de medula que teve depoimentos de Lobão e Marcelo Nova. Ouvia ambos, Lobão e Camisa de Vênus, quando o conheci. Mas nunca conversamos disso, nem sabia que ele gostava. Eu já era doador cadastrado, mas obviamente não era compatível, se não teria sido contatado. Ajudei avisando amigos para se cadastrarem.

Não poderemos mais conversar, ele não resistiu, mesmo tendo encontrado um doador. A última vez que o vi, não tinha mudado nada, assim como a vizinhança onde crescemos, com as mesmas casas e prédios. Passando por lá observo que conserva, ironicamente, até mesmo a tradição de pichações de anarquia.

Em Conta Comigo, filme clássico dos anos oitenta, dirigido por Rob Reiner e baseado em uma obra de Stephen King, os amigos de infância que protagonizam a aventura também se afastam muito ao decorrer da vida. Como diz o escritor retratado na película, alter ego de King, nunca mais terei amigos como os que eu tive quando tinha doze anos – acrescentaria aqueles dos treze aos quinze.

* Daniel Souza Luz é jornalista. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com