Síncope

O jornalista Daniel Souza Luz escreve o conto Síncope, publicado originalmente em 2017, na revista Alcateia.

– Financeiro. Bom dia!

Ouvi a gargalhada do outro lado da linha.

– Tá louco? É de noite, porra. Esse número é o da sua casa. Ou anotei errado e você ainda está no trampo?

Confirmei que havia acabado de chegar ao apê, desacorçoado. Era Nathan, meu primo. Chamando-me para sair. Dispensei. Não estava mais na universidade. Quinta à noite, nove horas. Madruguei às seis, não comia desde às três da tarde.
Vendi as férias.

Acalentadas há mais de ano. Tiraria alguns dias em uns três meses. Esquentei uma pizza no micro-ondas. Fui dormir. Sozinho. Era assim há um semestre. Ana estava na faculdade. Não nos falamos mais desde que ela se mudou. Ela podia aproveitar, era onze anos mais nova; eu pude, fui jovem. Só se vive uma vez, antes de se formar. Restou uma foto juntos, revelada depois que ela partiu.

Apaguei as demais. Admirei-a e a guardei num livro do Saramago. A capa era linda, roxa, cromada. Nunca li. Desliguei a luz e o cérebro. Estava coberto de sangue. Acordei empapado. Não via nada, só vermelho. Não sentia dor. Corri para o banheiro, lavei o rosto. Procurei o corte. Nada. Tudo estava vermelho.

VERMELHO; em tons mais claros e escuros. Meu coração engatou a sexta. Perfeito. Visão perfeita, mas tudo avermelhado. Liguei para o chefe. Tive que ir. Cheguei atrasado. Ia de carro. No primeiro semáforo, dei-me conta de que um daltônico passaria por menos apuro. Fui de ônibus. Contei de novo o que es-tava se passando.

– Mas que merda? O livro era o Ensaio sobre a Cegueira? Eu não li, mas vi o filme, tudo fica branco. Você está sugestionado. Vá pra sua mesa, rapaz. Que coisa…

– O livro era A Bagagem do Viajante.

Não houve resposta.

De fato, nada me impedia de trabalhar. Uma única cor, mas a tela do computador era nítida e a papelada estava lá para ser conferida, calculada, relatada. Em vinte minutos, sim, na sua mesa, senhor. Falava ou não? Falei. Incredulidade. De toda a firma. Liguei para meus pais. Ninguém atendeu.

– Você fica tirando sarro desses tais olavetes, que tudo o que eles vêem é comunismo, viu, você ficou igual a eles! – gracejou André do RH, o boçal daquele prédio. Mas ri, boa piada.

Fiquei o fim de semana em casa. Li tudo que pude a respeito em buscas exaustivas, ou seja, nada de relevante. Fiz muitas ligações. Incompreensão. Enchi o saco de uma desafortunada secretária até marcar encaixe com um neurologista, na segunda.

A primeira de dezenas de consultas. Nada havia de errado. Intrigados, os médicos pediam para que eu assinasse autorizações para pesquisas.

Exames feitos, mandavam-me para psiquiatras e psicólogos. Minha produtividade caiu. Seguravam-me porque sou bom funcionário. Sempre me calei perante os desmandos, embora gostasse de pensar que fosse insubmisso. Estava sendo-o, finalmente. Um pequeno prazer, junto aos hambúrgueres esquentados no micro-ondas e o Redtube.

Tudo psicossomático; a explicação mais plausível. Os antidepressivos passaram a fazer com que me sentisse um zumbi. Mesmo dormindo cedo, acordava de madrugada com o peito em chamas. Demorava a dormir de novo. Resolvi esconder minha condição de amigos que não via há tempos. Houve uns churrascos em paz. Beijei Andréa.

Desde a adolescência ansiava por isso. Quando acordei com ela ao meu lado, enxerguei seus olhos verdes por alguns minutos. Ela, no entanto, estava rubicunda como jamais fora e o quarto na penumbra era rubro-negro. Três meses depois, negaram-me as férias. Tinha serviço demais no escritório, pediram-me para esperar umas semanas.

Saí de lá pedalando furiosamente. O semáforo estava verde para mim, pela sutil mudança de tom, francamente. Acordei sentindo que estava caindo, como eventualmente acontece quando estou quase dormindo. A dor infiltrou-se aguda na minha consciência.

– Que bom que você está entre nós.

Era uma enfermeira com o cabelo pintado de vermelho. Sempre achei feio, faz com que garotas bonitas pareçam velhas dondocas. Seus olhos azuis quase transluzentes contemplavam-me intrigados. Fui jogado por cima do capô, estava com um enorme galo na fronte, o braço esquerdo quebrado, fratura exposta na perna direita. Ela não entendia por que eu sorria tão desbragadamente.

Lá fora, tudo cinza, os prédios, o céu. Sempre fora assim. Nunca havia me sentido tão feliz.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. Este conto foi publicado originalmente na revista Alcateia, editada por Daniela Pace Devisate, autora da ilustração que acompanha este conto. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com