Rubem Braga e o almoço mineiro

Hugo Pontes relembra passagem do escritor por Poços de Caldas

Rubem Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, no dia 12 de janeiro de 1913 e faleceu no Rio de Janeiro em 19 de dezembro de 1990.

Seu pai, Francisco Carvalho Braga era proprietário do jornal Correio do Sul onde o cronista começou a publicar os seus primeiros textos. Tornou-se famoso como cronista de jornais e revistas de grande circulação no país. Foi correspondente de guerra na Itália e Embaixador do Brasil em Marrocos.

Ingressou na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, em seguida transferiu-se para Belo Horizonte, onde concluiu o curso, em 1932. Nesse mesmo ano, deu início a uma longa e brilhante carreira de jornalista fazendo a cobertura da Revolução Constitucionalista de 1932 para o Diários Associados, de Belo Horizonte.

Esteve em Poços de Caldas nessa época. Deixou o registro de sua passagem, nesta crônica publicada em jornal de São Paulo no ano de 1934 e, mais tarde, no livro “Morro do Isolamento: crônicas de Rubem Braga”, Editora Brasiliense Ltda, São Paulo,SP, 1944.

ALMOÇO MINEIRO
Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.

Falamos de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política.

Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram ideias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que, infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergeis, os proletários armênios e as pessoas presentes.

O certo é que um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um funcionário público municipal. Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública, nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão.

O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável. É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos.

Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios. Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora linguiça de porco e talvez um pouco de farofa.

Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical.

Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído, mas uniforme.

E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve – do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoada de coisas simples e boas. Era o encanto de Minas.

* Hugo Pontes é professor, poeta e jornalista. E-mail: hugopontes@pocos-net.com.br