Picassos Falsos

O jornalista Daniel Souza Luz escreve artigo sobre sua paixão pelos quadrinhos e sua relação com a HQ ao longo das décadas.

Em pleno 2018 não vejo mais ninguém contestar o status de arte das histórias em quadrinhos. Deve haver, dado o obscurantismo que ora grassa, mas felizmente não leio ou ouço mais esta estultice.

Hoje entendo que quadrinhos não é literatura; é uma arte à parte, tão importante quanto as letras, o cinema, as artes plásticas ou qualquer outra. Também creio que a minha geração e as que vieram depois também já entendem que não é algo apenas para crianças, embora quadrinhos infantis e infantojuvenis sejam fundamentais.

Pena que muitos ainda associem também apenas a super-heróis – que também são essenciais, diga-se de passagem – para adolescentes e adultos imaturos. O fato é que o mero nerdismo de cultuar somente este nicho ou mangás me irrita um pouco, diante de tantas vertentes para os quais as HQs (histórias em quadrinhos, para quem não pegou ainda o significado da sigla) se abrem, exuberantemente.

E isso sem demérito para estes gêneros ou fanboys que não se circunscrevem aos estereótipos. Aprendi a ler por causa dos quadrinhos que meu pai lia para mim e meu irmão Eurico (minha irmã Fernanda ainda não havia nascido): Brasinha, Gasparzinho, Luluzinha, Mônica, Mickey e principalmente do Recruta Zero.

Saquei alguns rudimentos de leitura ali e quando entrei no “prézinho”, como chamávamos a pré-escola, aprendi o mais rápido possível. Meu pai tinha o hábito de deixar para ler no dia seguinte parte das histórias. Assim que comecei a ler devorava as revistas, queria terminar as histórias logo, e as lia para meu irmão também, que não via a hora de estudar. Isso foi entre 1979 e 1981.

Meu pai também lia para nós o Pasquim, adorava o ratinho Zig, criado pelo imortal Jaguar (que não é da ABL), embora ainda não entendesse muito as piadas. Por isso, desde tenra idade sabia que vivíamos numa ditadura militar.

Li alguns formatinhos com histórias da Marvel/DC e principalmente gibis do Pelezinho ao longo da década, mas foi só no fim dos anos oitenta que comecei a comprar por conta própria, com dinheiro da mesada ou economizado do lanche, revistas de HQs, tornando-me apreciador mesmo.

E a porta de entrada foi a MAD e o humor. Mais amigos compravam, adorávamos as zoeiras, paródias de filmes e programas de TV e quadrinhos como Spy versus Spy, as tiras do Aragonés e o primeiro quadrinhista brasileiro autoral que conheci, o mestre Ota.

Conforme fui entrando na adolescência, no entanto, a MAD passou a ser pouco para mim, bobinha até. Comecei a me aventurar nas bancas do centro e descobri revistas que meus amigos não liam. Aí foi uma festa: Geraldão do Glauco, Chiclete com Ba-nana do Angeli, Piratas do Tietê do Laerte (hoje seria da Laerte, com a mudança de gênero), Níquel Náusea do Fernando Gonsales e a Circo, que reunia todos estes e mais outros tantos.

Aí o jogo era mais pesado: quadrinistas brasileiros bocas-sujas, sem pudores alguns, detonando não só a tudo e a todos, como também sacaneando a si mesmos. A MAD, por mais legal que fosse, não publicava palavrões e também não tinha históricas com depravações, taras e retratando violência.

A ditadura e a censura tinham acabado e não havia mais limites. Curiosamente, hoje o humor em geral é o oposto da inteligência de então. Os pre-tensos defensores do humor e novos humoristas em geral, que só repetem clichês que já eram burros e sem graça naquela época, são uns hipócritas.

Se a Chiclete com Banana e a Big Bang Bang ainda fossem publicadas os pseudo defensores do humor “politicamente incorreto” aqui já estavam pedindo censura, aliás se o Charlie Hebdo também fosse publicado em versão em português já tinham entrado lá e matado todo mundo também.

Ainda bem que a nova geração de quadrinistas brasileiro engraçados e ofensivos não é burra ou racista como os Gentilis da vida: Allan Sieber, André Dahmer, Chiquinha e até o Ricardo Coimbra, com quem tenho o pé meio atrás, mas que faz tiras matadoras. O mundo não cabe no maniqueísmo do politicamente correto ou incorreto; se algo se afirma assim, pode ter certeza de que é uma merda. Posto isto, tudo mudou de vez para mim em 1990.

Foi quando um amigo do meu irmão, o Jorge, cujo pai foi o primeiro dono da hoje extinta banca Playboy, nos apresentou a revista Animal. Quase ao mesmo tempo achei em outra banca a graphic novel O Edifício, do Will Eisner, o inventor desta narrativa gráfica mais sofisticada, e os primeiros números do V de Vingança, do Alan Moore e David Lloyd. Até então, nunca tinha visto obras tão complexas.

Política, citações musicais e literárias, lirismo e violência, muita violência: tudo estava lá. As HQs europeias da Animal em especial me marcaram muito, assim como a dos poucos autores brasileiros que publicavam nela, caso de Priscila Farias.

Ranxerox, de Stefano Tamburini e Tanino Liberatore, e Zanardi, de Andrea Pazienza, eram amorais e retratavam violência sexual também, por exemplo. Entendi perfeitamente o sentido, no entanto: falavam a respeito disso para refletir a decadência da Itália dos anos oitenta. Para mim, eles e os editores originais, da revista Frigidaire, são os caras mais fodas daquela década.

Estes italianos anárquicos não só fustigavam tanto a direita quanto a esquerda, como também faziam ação direta para acabar com violência de verdade: tentaram simplesmente parar a guerra do Afeganistão, imprimindo e distribuindo comunicados falsos em russo, dizendo para os soldados irem para casa, conforme relata o jornalista Rogério de Campos, editor da Animal, na reedição das histórias completas do Ranxerox. Não deu certo, mas quem no mundo das artes teria essa coragem?

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com

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