O homem que sabia de menos

Quando Bentinho nasceu, era véspera de feriado municipal. Dia santo em que a cidade praticamente parava. O pai era puro êxtase: contava aos quatro cantos que seu filho iria nascer sob as bênçãos do padroeiro da cidade.

“Eu sou José Bento e meu filho vai ser Bentinho, porque vai ser igual a mim”, dizia. O menino ainda não tinha nascido, não tinha sido batizado, ainda não tinha sequer mamado, mas já tinha nome e destino na vida.

Dito e feito. José Bento era o pedreiro mais requisitado da cidade. Não tinha engenheiro ou arquiteto que ousasse a contestá-lo. Se tivesse formação, seria imbatível. Ele só não tinha grife. Mas isso pouco importava para os clientes.

Como José Bento bradava para quem quisesse ouvir, Bentinho seria igual a ele. O menino mamou até quase dois anos. Maria, a mãe, pedia secretamente ao padroeiro que fizesse Bentinho desmamar. Não aguentava amamentar o bebezão pelo menos três vezes por dia e que crescia a olhos vistos.

Parecia aqueles pães caseiros que a mãe gostava de fazer todo domingo depois do almoço, que ficavam enormes a partir de uma pequena massa de água, farinha e ovo.

Com cinco anos, chegou a hora do garoto ir para a escola. “Precisa ter instrução”, dizia o mãe. O pai não se animou, mas não se opôs. Para ele, o garoto estaria encaminhado na vida se seguisse seus passos.

Nas aulas, Bentinho contava os minutos para ir para o intervalo comer lanche, brincar e jogar bola. O desinteresse pela escola era cada vez maior à medida que o tempo passava. Chegou um momento em que ele decidiu, por si só, para de ir às aulas. Ele saia cedo de casa para ir na escola, mas nunca chegava a entrar.

Quando a direção descobriu, acionou a mãe de imediato. Foi um baque para Maria. Ao invés de confrontar o filho, decidiu ir atrás dele logo após sair para mais um dia de aula. Flagrou o menino num campinho de terra batida, a algumas quadras da escola, jogando bola com outros garotos mais velhos.

Bentinho foi levado para casa sob ameaça de uma poderosa vara de marmelo da mãe. O pai, quando soube do ocorrido, sentenciou: “Esse menino vai entrar no eixo agora. A partir de amanhã, vai me acompanhar no serviço”.

A mãe protestou, mas não havia o que fazer. No dia seguinte, José Bento e Bentinho seguiram para o trabalho. No começo, Bentinho observava com admiração o pai trabalhando. Aos poucos, começou a ajudar em pequenos serviços.

Com 10 anos, Bentinho parecia que tinha 12 ou 13, tamanho era seu ritmo de crescimento. “Puxou o pai”, dizia com orgulho José Bento. O garoto logo aprendeu a preparar cimento, pintar pequenos espaços, bater pregos e outras coisas típicas de uma construção.

Com 15 anos, Bentinho foi promovido pelo pai a servente de pedreiro. Já fazia trabalhos braçais mais pesados e outros serviços de maior responsabilidade. Logo virou pedreiro de fato e depois passou a ser mestre de obras. Era incontestável: Bentinho nasceu mesmo para trabalhar em uma construção, como profetizou o pai.

A vida dedicada apenas ao trabalho, no entanto, começou a cobrar seu preço quando Bentinho fez 18 anos. Com o dinheiro do trabalho, comprou um carro. Os problemas começaram na hora do registro. No cartório, ele teve grande dificuldade em conseguir assinar o documento do veículo.

Pior mesmo foi quando descobriu que precisava fazer uma prova para conseguir a carteira de habilitação. Ele mal sabia escrever o próprio nome e muito menos ler. O pai logo contornou a situação: “O importante é saber dirigir. Você não precisa dessas coisas por aqui”. Problema resolvido.

Com o carro, os olhares das moças da cidade se voltaram a Bentinho. Logo, ele começou a namorar Rosa, uma das mais belas daquelas bandas. O namoro transcorria sem maiores percalços, mas novamente os anos fora da escola voltaram a cobrar o preço. Rosa cismou que queria ir no cinema na cidade vizinha.

Em cartaz, um daqueles filmes da moda que todo mundo queria assistir. Bentinho ficou receoso, pois não tinha habilitação. “Vai tanta gente que você acha que a polícia vai pedir documento justamente para você?”, sentenciou o pai.

E Bentinho e Rosa foram ao cinema. Era a primeira vez de ambos. Enfim, quando a sessão começou, bateu o desespero: o filme era legendado e ele não entendia nada do que estava acontecendo. Começou a suar frio e sentiu-se deslocado, como nos tempos em que estava na escola.

Na volta para casa, enquanto Rosa falava sem parar sobre a experiência no cinema, Bentinho se calou. A vida seguiu em frente, mas preparou mais uma surpresa para Bentinho, desta vez, sem relação com a saída da escola.

Após um dia de serviço puxado, ele passou mal. O pai, sem demora, o levou ao posto médico. O diagnóstico foi um princípio de infarto, contornado em tempo. Dias depois, Bentinho voltou ao médico e recebeu a pior notícia da sua vida: ele era cardíaco e não poderia mais fazer grandes esforços físicos.

Praticamente uma sentença de morte. Bentinho parou de trabalhar como pedreiro e teve que começar a tomar remédio todo dia. Para minimizar, arrumou um trabalho na loja de construção da cidade. Era o jeito de não se afastar totalmente da sua grande paixão.

Mas se havia uma coisa que Bentinho não tinha era disciplina. A mãe colocava o remédio todo dia na mesa da cozinha junto com um copo de leite. Quando Maria pressionava, ele tomava, mas quando ela não estava vendo, Bentinho jogava no vaso sanitário e dava descarga.

Mais uma vez, a vida cobrou o preço da negligência. Em uma dia em que Maria não estava em casa pois havia ido ao mercado, Bentinho, depois de jogar fora mais uma vez o remédio, saiu para o trabalho. Após caminhar alguns passos, sentiu um desconforto. De imediato, voltou para casa.

Cambaleando, entrou na sala, em busca do remédio, que estava o armário. Bentinho entrou em desespero: apesar de saber o nome do remédio, por não saber ler, não sabia qual era a caixa do comprimido que deveria tomar.

Ele perdeu os sentidos e caiu. Maria, quando voltou do mercado, encontrou o filho estirado no chão da sala, já sem vida. Bentinho morreu porque não sabia ler.

* João Gabriel Pinheiro Chagas Freitas é jornalista e diretor do Jornal da Cidade. O conto foi publicado na antologia “Estância Cultural”, da Academia Poços-caldense de Letras. E-mail: joaogabrielpcf@gmail.com