Karnov

O jornalista Daniel Souza Luz escreve sobre o seu amigo Bruno Karnov, falecido recentemente.

Refleti se devia sair dos temas habituais das minhas crônicas, ainda mais num momento delicado como o da morte de um amigo.

Tudo ainda é muito confuso e o impulso de escrever uma hagiografia é muito forte. E o meu amigo Bruno não era nada santo, tinha defeitos pra cacete, era humano. Também tinha qualidades demais, vou tentar contar parte de sua história, aquela com que convivi, ressaltando-as, sem dourar ou psicodelizar a pílula.

Não me lembro mais se foi a Dany Medina, o Limão ou o Rafa Stivale que me apresentaram o amigo deles Bru, por volta de 2009. Sei que foi um desses amigos em comum. Naquela época ele morava em Poços. É curioso quando me lembro destes momentos em que conheço pessoas eu viriam a ser mui-to amigas, naquelas horas são apenas mais uma pessoa simpática que conheci dentre tantas outras.

Convivendo em rolês e nos tempos em que ele foi garçom no extinto Bar do Limão, na esquina das ruas Assis e Alagoas, fui me tornando cada vez mais amigo do Brunão, com quem compartilhava muitas referências culturais. Um dia ele simplesmente pirou e voltou para Sampa, sem dar tchau para ninguém.

Reencontrei-o por acaso em 2011, no Parque da Independência, quando fomos assisti ao magnífico show do mítico Gang of Four, no Festival Cultura Inglesa. Ele me indicou alguns sons, falamos sobre a vida, retomamos contato. Encontrávamos-nos esporadicamente em shows e trocávamos muita ideia online sobre quadrinhos, cinema, literatura, música e ativismo. Em 2013 descobri que ele era cineasta, não fazia ideia.

Ele me mandou diferentes cortes do seu curta Unfit, o Chá de Bebê e me pediu algumas opiniões, em especial sobre a trilha sonora – se determinado trecho deveria ser ilustrado com uma música do Black Flag ou do Screamers. Adoro também essa segunda banda, mas optei pela segunda. Foi a adotada na versão final, não sei se tive alguma influência ou não. Fui assistir à estreia no Cinesesc da rua Augusta e depois fomos tomar umas brejas, na Augusta mesmo, quando conheci vários de seus amigos paulistanos.

No catálogo da mostra de curtas-metragens redescobri que seu nome é Bruno Vettorazzo Carnevali. Já tinha visto no extinto Orkut; Karnov, o pseudônimo que escolheu, era um personagem de videogame dos anos oitenta e noventa, um lutador russo. Depois disso passamos a nos encontrar com frequência, eventualmente ficava hospedado na casa dele em Sampa e numa das vezes em que ele veio visitar Poços de Caldas ele abrigou-se na minha, junto com uma amiga.

E vieram rolês épicos, que dariam literalmente um livro e não cabem numa crônica, tanto boêmios como de militância social. Fomos juntos na Marcha Antifascista de 2014 no centro de São Paulo, no show do fundamental grupo de rap Public Enemy e vários outros e ele ainda me arrastou para a Ocupação do Parque Augusta, no qual ativistas promoveram uma Zona Autônoma Temporária, de inspiração anarquista/autonomista, para preservar a vegetação do parque na área central de São Paulo, pois a área é cobiçada por construtoras que querem fazer prédios naquela área verde.

Foi um dos dias mais aprazíveis da minha vida, ficamos horas conversando e ainda tive o prazer de assistir a um show da minha banda brasileira favorita, as Mercenárias, de tarde, sem palco, de graça, em frente a elas. Dentre as várias pérolas que o Brunão já me disse, lembro em especial dele dizendo que foi uma honra ajudar a carregar o Marcelo Rubens Paiva em sua cadeira de rodas para dentro do Parque Augusta. Ele tinha muito dessas.

A última vez que o vi foi há uns seis meses, ele estava feliz com a namorada, que é aqui de Poços. Há duas semanas ele se foi. Dias depois saiu a condenação de militantes cariocas das Jornadas de Junho de 2013. O Bruno foi preso duas vezes em protestos, uma vez por se manifestar contra os mal-feitos da Copa de 2014, a outra numa manifestação de rua no qual protegeu uma garota negra, que sequer conhecia, de abusos da PM.

Ele me confidenciou, nesta ocasião, que tinha medo que fizessem com ele o mesmo que fizeram com a Elisa Quadros Sanzi, a Sininho, imolando-o na mídia. Segue a vida, esse conflito difícil de suportar. Toda vez em que eu bater de frente com nazifascistas vai ser em sua honra também, Brunão.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com