Enquanto isso milhares morrem…

Esses são anos sem encanto. Woodstock nos deixou poucos herdeiros. A ditadura, não fossem o Chico e o Caetano, seria de todo esquecida.

O Rock’n roll não vingou. Elvis é hoje o rei de súditos mortos. A Bossa Nova é só um lamento triste. Um murmúrio tímido em um raro dia de sol. Copacabana foi arrastada. Brasília infestada. A ideologia que Cazuza pediu não veio. Estamos todos trêmulos em cima do muro.

Covardes, engraxando as botas dos militares. Comprando à preço alto os bilhetes de seus comícios de horrores. A grande bomba de gás lacrimogêneo flutua sobre nossas cabeças. A grossa e escura cortina da nossa ignorância. Nos tiraram a cultura e com ela a capacidade de refletir.

Viciaram nossas papilas degustativas com a comida pronta da raiva, do deboche, da intolerância e do descaso. O funk erótico, o novo sertanejo e outras tantas parafernálias anestesiantes e degradantes. Letras ralas para hipnotizar a grande turba.

E para coroar a era do absurdo, as redes sociais que nos tira o rosto e nos dá sensação de impunidade. Lugar onde podemos ser muitos. Onde podemos ser todos. E onde no final das contas não somos ninguém. Velha e certeira estratégia de guerra para uniformizar as massas. Todos devem ter o mesmo gosto e opinião.

Que se traduz em ter opinião alguma. O filho da estrela, a separação do funkeiro, o traseiro da atriz. Nos deram a infantil ocupação de observar o circo. E também fazer parte dele. E nos achamos tão incríveis, tão especiais em nossos perfis sociais.

Nossos rostos retocados por filtros embelezadores. Todos temos o mesmo semblante de mármore. A mesma boca monossilábica e estúpida. Já estamos uniformizados e nem nos damos conta. O horizonte ensolarado, o aluguel do iate para a foto do verão.

E uma polêmica esdrúxula para nos sentirmos parte de algo importante. Enquanto isso, milhares morrem. Quem fabrica a melhor vacina, quem liberou primeiro, quem tinha razão antes. Quem será o herói do momento. E a total ne-gação do caos. As festas, as aglomerações insanas. A doença não existe.

Somos imponentes, imbatíveis, eternos. Até que um vírus minúsculo nos leve à lona e alguém no enfie às pressas um tubo de oxigênio em nossas traqueias. Isso se houver oxigênio. Isso se houver traqueia.

O barulho nunca foi tão alto. Gritar como modo de não ouvir tão utilizado. Enquanto isso, milhares morrem. Pobres, pretos, velhos. Anônimos asfixiados. Números. Estatísticas. E está tudo bem se isso gerar algumas capas de revista. Tudo bem se o número de casos for maior no bairro vizinho.

Se o infectado for uma tia distante ou um primo do qual nem lembramos o nome. Desde que o vírus não suba a nossa calçada, continuaremos alheios engrossando o caldo farto da hipocrisia. “A família brasileira”. “Deus acima de tudo”. E claro, um homem bélico para representa-lo. Enquanto isso, milhares morrem.

E continuaremos sorrindo. Fazendo a piada do momento. Compartilhando o meme da vez. Rindo dos possíveis efeitos da vacina. Disseminando indiscriminadamente a desinformação. Deglutindo em litros as ordens subliminares dos grandes estrategistas de massas.

Nunca estivemos tão histéricos e tão ridículos. Tão presos à nossa vaidade. Tudo bem se o mundo acabar amanhã desde que eu seja célebre hoje. Patéticos, extravagantes, burros. Em alguns meses, se tivermos muita sorte, nos despediremos de uma convulsão mundial. De um vírus que dizimou populações. Que apagou rostos e nomes. Mas não lembraremos disso.

Estaremos embriagados demais comemorando. Ou marchando até às urnas para eleger o próximo herói de pano. No final das contas, o caos vivido não nos servirá de nada. Já que teremos nos comportado como baratas após a explosão de uma bomba nuclear. Sobreviventes rasteiros e sem consciência do que os atingiu.

E claro, atrás de lamber as sobras daqueles que nos comandaram os dias. Para arrematar, corrompo as palavras do velho Sartre; “O inferno são outros. E a pandemia meu caro, somos nós…”.

* Beatriz Aquino é atriz e escritora. E-mail: beapoetisa@gmail.com