New Model Army

O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica sobre os tempos de criança em Poços de Caldas

O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica sobre os tempos de criança em Poços de Caldas, onde brincar de guerra era uma coisa muito natural.

Havia Atari e tinha brinquedos de guerra. Tanques, armas e soldados de brinquedo hoje me parecem uma bizarria, mas vá lá. Que eu gostava de brincar de guerrinha, gostava. Quase todas as crianças gostavam. Quer dizer, ao menos os meninos (mau sinal, não é?). Teve uma vez que foi fera demais.

Armamos (opa) de fazer uma guerrinha diferente: em vez de ser entre a molecada com pistolas de brinquedo -ou mãos fazendo as vezes de revólveres – e com nós mesmos bancando os soldados, fizemos uma guerra entre os nossos brinquedos. Juntou um pessoalzinho na casa do Coruja, amigo nosso de Santos, que costumava passar as férias em Poços de Caldas na casa da avó dele, na rua de cima, a Marçal Santos, no bairro de mesmo nome.

Combinamos assim: as escaramuças aconteceriam no gramado do quintal. No corredor ficava o nosso quartel-general. Na edícula do fundo, onde era aberta a área da máquina de lavar, ficava o quartel general do inimigo, que no caso era nosso amigo Maurício, cujos pais tinham grana, o que lhe proporcionava tantos brinquedos de guerra que era ele sozinho contra a rapa.

Assim seguiu-se a batalha, cheia de estratégias e bombardeios com pedrinhas nas naves; se alguma era acertada tava fora. Os quartéis generais eram protegidos por campos de força. Mesmo invisíveis, respeitávamos completamente os entes intangíveis que criamos.

Assim se deu por horas. O mecanismo do campo de força eram pedras que deviam ficar em cima de uma cadeira; punham-se elas no chão e se entrava com os brinquedos que não podiam mais ser atacados. Não me lembro mais quem gritou, acho que foi o Coruja.

– OLHA O CAMPO DE FORÇA DELE DESLIGADO!

O Maurício estava atacando algum flanco. Ele estava longe da casinha do fundo. Saímos correndo e entramos impetuosamente
dentro do quartel-general dele. Lembro que estávamos eu, meu irmão e o Coruja, mas tinha mais moleques ainda. Eu tranquilamente bombardeei com pedrinhas os bonequinhos de soldado dele, no começo.

Quando vi, no entanto, o Coruja estava dando bicudas nos jipes e tanques do Maurício. Aí todos os combatentes decidiram que não haveria prisioneiros. Não conhecíamos a Convenção de Genebra ainda, éramos muito jovens. Ele voltou para lá gritando para pararmos, mas fomos derrubando e “explodindo” tudo.

Conversando com meu irmão hoje, ele lembrou que o Maurício levou para lá uma bela réplica de um F-14 Tomcat, dessas que se monta pacientemente com cola em casa. Voou pelos ares, no mau sentido, durante aquela blitzkrieg bop mirim. O Maurício foi embora chorando, juntando os cacos dos brinquedos dele.

Se eu fosse ele, sairia chutando nossos brinquedos,afinal ele saiu pelo corredor atravessando o nosso campo de força invisível, que deixamos cuidadosamente ligado. Mas ele não foi à forra. Depois ficamos morrendo de medo dos pais dele bater na porta de nossas casas e cobrarem-nos os brinquedos estragados. Não deu nada. Ninguém se machucou mesmo. Essas guerras são as únicas que não são tão bestas.

* Daniel Souza Luz é jornalista. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com