Aproveite o silêncio


“A rotina é minha maior inimiga”. Todo dia quando se levantava, Julio lembrava do mantra que sua falecida esposa sempre repetia.

Para ela, a rotina era inaceitável, pois acreditava que era preciso existir vida além dos compromissos profissionais e domésticos. Enquanto foram casados, tédio era uma palavra que não existia. Ela não chegava a ser hiperativa, mas apenas alguém com fome de viver. E quem tem fome de viver não consegue estar em um estado de letargia.

Por décadas, ela foi muito bem sucedida em sua missão. Mas toda missão um dia chega ao fim e a dela, infelizmente para Julio, também chegou.

Aquela mulher vibrante e carismática, que se levantava logo quando o dia clareava e irradiava felicidade com um sol, se apagou. Até hoje, Julio não sabe ao certo o que causou a morte da esposa. Na verdade, ele não quis saber. Ouviu na época algumas explicações dos médicos, mas achou que nada serviria para trazer a companheira de volta.

E a única coisa que lhe restou foi seguir em frente. Sem a esposa, acabou sendo natural ele mergulhar de cabeça no que mais temia: a rotina. A primeira coisa que fez quando percebeu que a casa em que viveram por anos não seria mais a mesma sem ela foi colocá-la à venda.

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Não havia mais motivo para continuar morando ali. Em uma negociação que se resolveu em poucas semanas, ele conseguiu trocar a casa por um apartamento menor, mas localizado em um edifício de alto padrão. Mas quando se mudou para o apartamento, descobriu que o vazio interior era ainda mais profundo.

O apartamento era impessoal e minimalista. Parecia aqueles lugares projetados só para aparecer em revista de arquitetura. Era um martírio entrar, sair e depois ter que voltar. Julio então passou a questionar qual era o sentido de continuar levando aquela vida.

Um belo apartamento, uma aposentadoria de quase cinco dígitos e um bom emprego não conseguiam preencher o vazio que sentia na alma. Os filhos estavam radicados no exterior, os primeiros netos sequer o conheciam e os parentes que restavam na cidade já estavam tão velhos que esperavam apenas a hora de partir.

Julio passou a se isolar cada vez mais, tanto na vida social quanto no trabalho. Era um quadro de depressão que não tardaria a chegar e que possivelmente ficou prester a acontecer quando ele constatou que não havia mais o porquê continuar trabalhando, já que tinha dinheiro em quantidade suficiente para seguir vivendo confortavelmente até o fim dos seus dias.

Era uma sexta-feira quando Julio acordou e decidiu que seria o seu último dia de trabalho. Algumas quadras depois de sair do seu apartamento, ele parou o carro no semáforo, e resignado, ficou apenas aguardando o sinal verde. Foi quando um menino se aproximou e lhe entregou um panfleto publicitário pela janela do carro.

Por educação, Julio pegou e de imediato o jogou em cima de sua pasta, no banco do passageiro. Algumas quadras depois, o semáforo voltou a fechar e ele fitou os olhos no panfleto. “More em paz junto à natureza”, dizia em letras garrafais o slogan do empreendimento. Julio hesitou, mas acabou não resistindo.

O lugar ficava fora de mão, mas para quem estava indo ao trabalho apenas para se demitir, não seria perda de tempo. Meia hora depois, ele chegou ao local. Era um prédio recém construído, que ficava no pé da serra. Não era imponente como o que o prédio onde morava, mas isso não tinha importância para ele. Quando percebeu um homem entrar no prédio, o chamou.

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O homem se virou e veio em sua direção. Questionado, ele explicou que o local havia ficado pronto há alguns meses, mas que os proprietários estavam tendo dificuldades em encontrar quem comprasse ou alugasse, porque pelo fato do prédio estar no pé da serra, o frio era intenso e em época de chuva, a umidade em alguns dos apartamentos era um problema.

O homem, então, disse que o último andar, uma cobertura, era uma das unidades que estava à venda e sugeriu que Julio poderia visitar sem compromisso, pois era o síndico e responsável por atender eventuais interessados. Julio aceitou o convite e quando entrou no apartamento, os olhos brilharam pela primeira vez em muito tempo. O lugar não tinha nada demais, talvez se destacava por ter 70 ou 80 metros quadrados e tinha uma bela área externa, que dava vista tanto para a serra quanto para parte da cidade.

Julio sentiu uma vontade quase irresistível em morar ali. O síndico disse que o dono também aceitava troca, para facilitar o negócio. Pouco mais de um mês depois, Julio fechou a compra. Entregou seu apartamento de alto padrão pela cobertura com umidade incrustada na serra mais um valor de volta.

No primeiro dia em que foi morar no apartamento, Julio descobriu-se em meio a um silêncio ensurdecedor. Não havia o barulho de vizinhos, de carros, de sirenes ou de qualquer outra coisa. Ele puxou uma cadeira e sentou-se próximo ao gradil. Ficou ali por vários minutos, contemplando o nada. Diante da quietude que imperava, conseguia ouvir o vento sacudir com força os galhos das árvores. Era um som irresistivelmente belo.

Também percebeu que o som dos pássaros era intenso. Sabiás, bem-te-vis, sanhaços, maritacas, pardais e todo tipo de aves em revoada passavam por ali. “Espetacular”, pensava. A noite chegou e o cansaço bateu. Dormiu como há muito tempo não fazia. Só acordou no dia seguinte, junto aos primeiros raios do sol, diante de uma sinfonia interminável de pássaros.

Era uma sensação das mais prazerosa acordar daquela maneira. Muito melhor do que com o velho despertador ou com o celular. Julio, então, passou a saborear cada momento em que pudesse ouvir barulhos da forma mais natural possível. Despejar o café na xícara e ouvir as folhas do jornal sendo viradas passou a ter outro sentido. Abrir a torneira e ouvir a água escoar pelo ralo era quase que música.

Após o almoço, passou a ser praxe tirar uma sesta prolongada, até acordar para ouvir o grande espetáculo do dia, que era o por-do-sol. O crepúsculo deslumbrante, proporcionando uma profusão de cores, os sons do vento, das árvores e dos passáros era o bálsamo que ele precisava desde que perdeu a esposa. Todo som passou a ser percebido, por mais improvável que pudesse ser.

Em alguns dias, Julio sentava-se próximo do gradil e fazia experiências com alguns copos na mesa. Depois, os enchia com cerveja, apenas para ouvir o som da espuma se formando no fundo dos copos. Em dias mais frios, gostava de despejar o vinho para ouvir a bebida se espalhando pelo bojo das taças. Mas o som preferido era o proporcionado pelos copos de uísque.

Era um ritual: a garrafa espalhava a bebida pelo copo, que depois era girado, fazendo as pedras de gelo baterem no vidro, proporcionando um som único. Era uma embriaguez visual e auditiva. Assim, cada pequeno momento proporcionado por aqueles sons tão comuns, mas até então nunca percebidos, eram extasiantes.

Em um destes vários dias que se seguiram de apreciação de sons, Julio ficou imaginando o que escutaria quando chegasse o dia da sua morte. Poderiam ser o badalo de sinos, melodias suaves ou ainda vozes de crianças ao longe. Não havia como descobrir, a não ser que o dia então chegasse.

Enfim, em uma tarde fria de outono, com o céu completamente azul sendo tomado aos poucos por tons alaranjados, Julio sentou-se mais uma vez perto do gradil para contemplar tudo o que estava em sua volta. Logo após o crepúsculo, ele sentiu no rosto uma brisa. Julio suspirou e fechou os olhos. Eles não abriram mais, porque Julio havia ido para outro lugar, onde dizem que essas sensações são mais comuns ainda.

* João Gabriel Pinheiro Chagas é jornalista e diretor do Jornal da Cidade. E-mail: joaogabrielpcf@gmail.com