A culpa cristã e a liberdade dos sinceros

A atriz Beatriz Aquino escreve crônica sobre o comportamento nem sempre adequado das pessoas diante da religião.

“O único jeito de chegar até os céus é ser quem se realmente é. O único minha filha!” Disse o padre da minha infância ao me ver presenciar, estupefata, ele saindo esbaforido, fechando as calças e sem nenhuma vergonha, do quarto da minha tia beata-solteirona. “O único! O único!” Ele saiu repetindo sem culpa nenhuma. Ali ele não era padre.

Era apenas um ser humano pego, de mão cheia, em sua bestialidade. Quanta franqueza! Depois disso me lembro que ele fez sermões maravilhosos na igreja. Inflamados, sublimes! Um mais lindo que o outro! Eu não perdia uma missa. Uma admiração imensa por esse padre.

Pedi até pra ele celebrar meu casamento, mas aí ele já havia sido transferido ou morrido, sei lá. Opa! Percebem que inconscientemente já fui logo matando o padre devasso? Eita lasqueira de culpa cristã! Um inferno. Ops, desculpa. Uma droga isso. A criatura não pode pensar em nada fora da caixinha dourada permeada de rendas que lá vem o chicote.

Já nascemos na fila da castração. Você se debate, inventa modos de viver e de se distrair, mas a esteira da vida continua te levando para o mesmo lugar: Morte e culpa. E algumas ínfimas compensações. Se você se comportar direito, é claro. O Céu aos bons. Os céus àqueles pouquíssimos, àquelas criaturas bondosas e magrinhas que conseguem passar pela cabeça de uma agulha. Não. Acho que na Bíblia diz que é o rico que não entra no buraco da agulha, junto com algum camelo.

Ah, lembrei: Um rico montado em um camelo com o pescoço cheio de brilhantes, com dentes de ouro sorrindo descaradamente. Isso! É… Esse não passa mesmo. Quem sorri pra vida assim impunemente não entra no céu. Só entra no paraíso essa gente esquálida e silenciosa. Que nem a Madre Teresa só que menos famosa. Essa gente querida e bondosa, mansa que nem cordeiro. E magras, claro. Gente gorda não entra no céu. Musculosa também não.

Nada de excessos. Só o comedimento e esse ar de quem passou frugal pela vida. Gente interessante essa que vai pro céu, viu? Leves como uma pluma. As bocas só proferem sílabas mansas. Leves. Levíssimos. Uma pitada de gente fluídica em meio a essa manada de touros que é a humanidade. Pois bem. Mas o meu padre vive.

Ele tem que viver. Na minha imaginação ele está casado, tem dois filhos aos quais ele ensina tudo sobre teologia e amor ao próximo. À noite ele se embebeda de vinho da sacristia e faz amor com a sua mulher. Que não é a minha tia. Porque essa sim morreu de culpa. Dar para um padre, roubar ele de Deus, vixe!

Cinco encarnações enxugando com lenço de seda a umidade que brota do mármore do inferno. Não. A mulher do padre é feliz. Fêmea segura. Sabe que foi criada por Deus e que quando duas criaturas se encontram destinadas a se cheirarem até o fim de suas vidas não tem santo ou orixá que dê jeito. Ela respeita Deus. E agradece. E goza.

Nossa, como goza a mulher do padre. Gozos homéricos, litúrgicos, transcendentais. Uma mistura de todos os conceitos do Código da Vinci, Anjos e demônios, Maçonaria, tudo junto. Ela goza por tudo e por todos com respeito e gentileza. Mas devoção mesmo só ao homem dela. Aquele que a deixa atiçada enquanto consola multidões. Liturgia mesmo só a dele para ela e a dela para ele.

O resto é adereço carnavalesco, folclore e incenso. Mas ela é grata, viu? Ao orgasmo, ao seu homem, a Deus. Por isso Deus gosta dela. Ela entende o mundo com o olhar de fêmea da natureza. As cabras cruzam e parem. Os gatos rolam no telhado e procriam. O mundo é um cio contínuo. Sem culpas. “Está tudo certo, Deus. Eu agradeço e obedeço.” Ela diz serena e com uma pele maravilhosa. Bom, o padre vive.

Uma família de santos. Ajudam toda a vizinhança. Os filhos conhecem teologia e serão bons seres humanos. Já está de bom tamanho. Uma existência sincera como se deve ser. Porque o resto é adereço mesmo. Véu pra esconder o choro. Música pra disfarçar o grito de espanto de quem passa pela vida sem a coragem de encarar a danada do jeitinho que ela é.

* Beatriz Aquino é atriz e escritora. E-mail: beapoetisa@gmail.com