Você se lembra?

O jornalista Daniel Souza Luz relembra mais um episódio da sua adolescência em Poços

Na crônica Você se lembra?, o jornalista Daniel Souza Luz relembra mais um episódio da sua adolescência em Poços de Caldas.

Em meados dos anos oitenta meu pai estava cursando uma segunda graduação e minha mãe havia entrado na faculdade de matemática. Como não ficavam em casa à noite, pediam para minhas tias cuidarem de nós – de mim, do meu irmão Eurico e da então pequenina Fernanda, minha irmã mais nova. Minha tia Inoe era quem passava mais tempo conosco.

Tinha que nos vigiar para não passarmos trotes ou não zoarmos tudo ao redor. Era mais para não fazer bagunça, pois muitos da minha geração devem se lembrar dos cadeados no círculo de discagem dos telefones – meus pais acabaram se precavendo, depois de umas peraltices nossas, portanto creio que a fase dos trotes, essa grande estupidez, havia passado.

Gostava quando a tia Inoe ia lá; lembro dela dando gargalhada quando vimos um musical na TV e uma cantora infantil já esquecida, a Aretha, apareceu, e ela confundiu o nome com Vareta. Assim sendo, não me lembro por que fiz a maldade que ela me contou. Começou assim: qual é o sentido de não poder escrever nas paredes? Elas serão pintadas de novo mesmo.

Não há sentido, crianças sabem. Meus pais deram-nos a liberdade, a mim e meus irmãos, de escrever e desenhar na parede do quarto. Ou um dia quando chegaram o desastre já estava feito e não se importaram, pelo motivo explicado acima. Havíamos montado uma cidadezinha com nossos brinquedos; tinha casinhas, carrinhos e bonequinhos distribuídos num relevo montanhoso montado com cobertores em cima da cama.

Achamos justo, portanto, que a cidade tivesse um cemitério, como o que víamos da janela do quarto do fundo. Então desenhamos um na parede. Quando minha tia perguntou o que era aquilo, expliquei candidamente o que era e que tinha até a cruz do túmulo dela lá. Não me recordo de ter dito isso, ela que sempre me relembra deste episódio.

Tenho certeza que é verdade, porque dormimos uns meses com o cemitério desenhado na parede. Isso que era valentia, o que é contraditório. Na época um morcego entrou no nosso apartamento pela janela aberta. Então inventei que existia um vampiro e seu filho que circundavam nosso prédio.

Pior: comecei a acreditar na minha própria mentira. Passei a ter medo de abrir as cortinas e ser encarado pelos vampiros, sênior e júnior, levitando diante da janela. A irmã da tia Inoe, minha tia Elba, não podia ficar conosco, devido a outros afazeres. Sozinha, a tia Inoe era medrosa também. E por acaso numa noite a janela estava aberta.

Se a cortina não estivesse fechada, eu não tinha medo, só tinha pavor de abri-las. Sim, sei que não tem cabimento, mas para mim, à época, tinha lógica. Pois bem, vi o vulto de algo voando em frente à janela. Talvez um pássaro que acordou na hora errada, talvez de fato algum inofensivo morcego que vivia por perto.

Disso eu me lembro bem: saí correndo para chamar minha tia na cozinha, aos gritos. Todo mundo se assustou. Acho que coube a minha tia a tarefa hercúlea de fechar a janela da sala. Aí sim o ambiente ficou sinistro para mim: a cortina também foi devidamente fechada.

Agora não sabia mais se alguém estava voando por perto. Quando meus pais chegaram dessa vez, todo mundo já tinha ido dormir. Com vampiros rondando o prédio, quem iria querer ficar acordado passando medo, oras?

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com