Legião Urbana XXX anos, crônica do show

O jornalista Daniel Souza Luz escreve sobre o show do Legião Urbana em Poços, realizado em 2016

O jornalista Daniel Souza Luz escreve sobre o show do Legião Urbana em Poços, realizado em 2016, com a formação trazendo Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá.

Fui com o pé atrás. Mas num sábado à noite, em Poços de Caldas (talvez a cidade epítome de Tédio com um T bem grande para você), fazer mais o quê? Comprei o ingresso de última hora, desgostoso por estar escrito Legião Urbana e não “Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá tocam Legião Urbana XXX anos”.

Não consigo engolir que se chame Legião após a morte do Renato Russo. Além do mais, o disco fez trinta anos em 2015 e o espetáculo chegou aqui muito atrasado, em outubro de 2016. Mas bora lá, meu amigo Juliano Zappia também quis ir em cima da hora e comprou o ingresso lá mesmo no Ginásio Poliesportivo Arthur de Mendonça Chaves, habitual palco de shows no município, nos quais nunca havia ido, porque sempre ouvi falar da acústica horrível.

De qualquer forma, geralmente eram bandas pop que não interessavam e quando era algo bom eu já tinha visto em outros lugares. Ficamos na arquibancada e, apesar de certa distância, fiquei surpreso: não só o som estava razoável como a abertura, com Será, a primeira música do lado A do primeiro vinil, foi boa, com ela sendo bem executada.

Conforme anunciado, as músicas vieram na sequência: A Dança acabou desfigurada sem o arranjo funky feito por Renato Rocha; Petróleo do Futuro foi fiel; em Ainda é Cedo faltou o baixo pós punk proeminente do original (Rocha é um cara subestimado, mas ao menos foi citado posteriormente por André Frateschi, vocalista que fez as vezes de Renato Russo), o andamento acelerou no refrão e um solo “rock é rock mesmo” do segundo guitarrista no fim cobriu a sutileza da guitarra de Dado; Perdidos no Espaço ficou muito boa, com “efeitos espaciais” no vocal; Geração Coca-Coça para mim é ponto fraco do disco, mas mandaram bem ao vivo. Chegou a hora do lado B.

O Reggae ficou excelente, com efeitos lembrando dub e Dado cantando um trecho de Guns of Brixton, do The Clash, uma grande sacada; Baader-Meinhof Blues foi emocionante, fizeram uma versão pancadaria que a princípio ficou quase irreco-nhecível, mas manteve o espírito original; Soldados começou bem, apesar de terem atravessado após o segundo refrão o som ainda teve punch (nesse ponto a péssima acústica foi se impondo, o timbre do teclado ficou agudo demais); Teorema foi enérgica e correta; por fim, Por Enquanto fechou muito bem como também fecha melancolicamente bem o disco, ao vivo Bonfá foi maquinal como uma bateria eletrônica e fizeram um arranjo com certo peso, mas concentrado na eletrônica, lembrando o New Order, tal como a original.

Por mim o show podia até ter acabado ali, mas teve mais para a alegria do público, que me surpreendeu negativamente: achei a maior parte bem poser, só sabiam cantar os sucessos e, claro, Por Enquanto, tornada famosa por Cássia Eller numa versão, sinto muito, chinfrim.

Sei que ela era legal, mas não aquilo não me desce. A música seguinte às do primeiro disco foi Tempo Perdido, e aí paguei a língua: ainda bem que o show se estendeu, porque para mim o disco perfeito do Legião é o primeiro acrescido dessa belíssima música do Dois, outro discaço.

Ainda tocaram músicas menos óbvias do segundo disco: Daniel na Cova dos Leões e, numa boa jogada, Fábrica com outro vocalista, um cara bem andrógino. Dezesseis foi cantada por uma moça, numa outra tentativa fugir ao lugar comum, mas achei algo meio jovem guarda o vocal dela, ou, melhor ainda, parecia a Rita Lee dando gritinho nos Mutantes.

Dado e Bonfá também se revezavam no vocal, num esquema meio The Great Rock n’Roll Swindle, o disco do Sex Pistols após a saída de Johnny Rotten, com outros membros alternando-se ao microfone. Foi uma sequência de hits que poucas bandas podem se orgulhar de ter: Índios, Angra dos Reis, Pais e Filhos, Meninos e Meninas, Há Tempos e por aí vai. Quando saíram do palco, eu e Juliano adivinhamos o bis.

Faltaram justamente três grandes sucessos, e eles vieram conforme imaginamos corretamente (se bem que agora recordo que não tocaram Eduardo e Mônica), pois não ficamos olhando o playlist da banda em outras cidades: Faroeste Caboclo, Perfeição e Que País é Esse?. Neste bis, embora Frateschi tenha falado que 2016 estava sendo um ano terrível, senti certa dubiedade: se ele mandasse um “Fora Temer!” na lata, poderia tomar uma vaia, pois boa parte do público de meia idade provavelmente votou no então futuro prefeito de Poços e simpatizava com o impeachment.

Prudentemente, deixou no ar o que queria dizer, pois a postura mais assertiva poderia produzir reações parecidas com as que o Pearl Jam enfrentou na década passada, ao se deparar com um público conservador que não tinha a vibe do grupo. Quando essa parte do público cantava junto Que País é Esse?, ainda mais com aquela resposta “é a porra do Brasil” consagrada na versão ao vivo, eu inevitavelmente não conseguia dissociar: parece energia, mas é só distorção.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com