Dispositivo da moda

O jornalista Daniel Souza Luz relembra a febre do Atari entre crianças e adolescentes nos anos 1980

O mundo rodava em oito bits. O Atari arquitetava boa parte das estruturas do imaginário infantil. Os gráficos simples eram superdimensionados por nós, nada parecia unidimensional.

Paríamos universos sugestionados por aqueles jogos antediluvianos, que hoje mais parecem contemporâneos de trilobitas, tamanha a rusticidade. Mas faça um esforço e volte, ou, se for novo demais, ponha-se no lugar de uma criança em meados dos anos oitenta.

Imagine que a TV não se presta mais a ver desenhos animados. Você pode controlar uma versão vetorizada deles. Arriscar-se pelo espaço em Beamrider, por cursos d’água coalhados de perigo em River Raid, por uma floresta cheia de armadilhas em Pitfall, por vários ambientes na adaptação dos Smurfs.

Pilotar alucinadamente no Enduro. Defender o planeta em Space Invaders. Pode-se até incorporar o Mario – ele não apareceu no Nintendo, mas sim no Atari. E esses são os clássicos. Havia jogos menos famosos que eram muito mais emocionantes. Falando, em primeiro lugar, em adaptações de personagens conhecidos, de cara já dá para mencionar o jogo do Snoopy.

Voávamos-se na casinha de cachorro dele (!) enquanto tentávamos abater aviões inimigos. Neste tema, pararei por aqui, pois se for falar sobre como o jogo do ET era chato, isto daria um livro – na verdade, foi um fracasso tão retumbante que rendeu um documentário. O primeiro jogo que conheci no qual era possível voltar a cenários e havia mais possibilidades foi o Adventure.

Este era espetacular. O primeiro jogo de RPG que vi na vida. Num momento inicial, não havia como matar um dragão. No entanto, quando você descobria onde pegar uma lança, bastava voltar ao ambiente dele, devidamente armado. Sensacional. Um amigo com a família mais remediada tinha um Odyssey, que era videogame mais sofisticado. Minha mãe havia ganhado um numa rifa na faculdade, mas meu pai, numa sábia decisão, resolveu trocá-lo por um Atari, que tinha mais jogos.

Às vezes íamos à casa desse amigo, o Rodrigo Carvalho Passos, e jogávamos, no Odyssey, o Dungeons and Dragons, que jamais imaginávamos que era algo tão famoso. O D&D do Odyssey, além do console, também usava um tabuleiro. Era fascinante e divertido à beça, mas o impacto inicial veio do Adventure. Havia mais, muito mais.

O Atlantis era incrível. A partir de mísseis lançados de torres, era necessário proteger as redomas de cidades submarinas do ataque de impiedosas naves alienígenas. Dois jogos me pareciam claustrofóbicos, mas não me assustavam nem um pouco: em Hero, era preciso explorar ambientes fechados para salvar pessoas. O personagem era uma espécie de bombeiro com capacete e um mini-helicóptero atado às costas. Robot Tank era demais.

De dentro de um tanque, metíamo-nos num pega para capar com outros tanques num prado infinito, com montanhas inalcançáveis ao fundo, no qual eventualmente nevava. Sentia-me em plena Batalha de Kursk, embora até então ainda não tivesse ouvido falar nela. Reparem que uso muito o verbo “era”; de fato, foi uma era fantástica. Talvez o mais legal de tudo seja que, ao contrário dos jogos em rede hoje, com cada um jogando no seu computador ou console, reunia-se uma galera em casa, ou seja, era presencial.

Não estou certo disso, mas creio que o Atari vinha com apenas um controle e depois, se fosse o caso, podia-se comprar outro. O que me lembro bem é que alguns jogos tinham a possibilidade de ser jogados em dupla ou um contra o outro. O resto do pessoal esperava para revezar. Uma das melhores recordações que tenho desta época é de ter organizado um campeonatinho lá no apartamentozinho da minha infância com alguns vizinhos e meu irmão Eurico, no qual foram disputados vários jogos. Anotei os resultados numa cadernetinha.

Perdi-a e os nomes dos vencedores perderam-se nas brumas binárias de telas analógicas. A vantagem é que o nome dos perdedores também. O importante é que me lembro o nome de todos; além de mim e do meu irmão, também lá estavam amigos de primeira hora: o Fred Pinheiro, o Daniel Capitanini Zingoni, o Ciro Machado, o Marcão e seu primo Adônis, que era de Águas da Prata.

Este último era muito mais velho do que nós, tinha só um braço e era muito hábil; mesmo não o vendo nem sabendo nada dele há mais de três décadas, jamais me esqueci disso. O Daniel, que semanas antes de falecer encontrou comigo na rua e me falou sobre esses dias em que jogávamos Atari lá em casa, também nunca se esqueceu daquelas reuniões para travarmos aquelas batalhas cibernéticas. Não tem como esquecer.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com