Bauhaus

O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica sobre a banda inglesa Bauhaus

No fim dos anos oitenta era difícil demais ter acesso às bandas sobre as quais líamos em revistas especializadas ou nas de skate. Sempre digo isso.

Só mesmo mandando gravar fitas em lojas de discos, no escuro, sem saber se o som era mesmo bom ou não, economizando dinheiro da mesada ou não comendo o lanche na cantina da escola. Como alternativa, tínhamos vídeos de skate ou o Som Pop e o Vitória, ambos programas da TV Cultura, ou ainda o Realce, na extinta TV Manchete.

Se não tivesse disco da banda cujo clipe passou na TV, a única oportunidade de ouvir era aquela. Quando passou o clipe de Bela Lugosi’s Dead pela primeira vez fiquei hipnotizado. Já tinha ouvido falar de Bauhaus, imaginava que era incrível, mas aquilo estava além das minhas expectativas. Era mesmerizante.

Só o Sex Pistols tinha me proporcionado isso antes: criei expectativas demais sobre a música e quando ouvi, não só não me decepcionei, como também fiquei fascinado com algo que foi além do que esperava. O duro é que o videocassete de casa estava quebrado. Não havia previsão de conserto, ao menos tão cedo. Não havia como gravar o vídeo, portanto. Quis lembrar cada detalhe da música, portanto. Sabia que o programa reprisava no domingo seguinte, à meia-noite.

Eu e meu irmão resolvemos ficar acordados até tarde, só para vermos de novo o vídeo. Vimos e eu decorei mentalmente a batida, os acordes, os trejeitos de Peter Murphy no palco. Mas não era o suficiente. Descobri que o programa ainda reprisava na quinta de madrugada, lá pela uma da manhã. Nesse dia fingi que dormi e assisti mais uma vez essa última reprise do programa, sozinho, com o som bem baixinho.

Lembrei-me com carinho disso em 1996, quando já estudava na Unesp, no campus de Bauru, e fiquei acordado até às quatro da madrugada para gravar um clipe no programa Lado B, nos bons tempos da MTV: Pinch, do Acetone, uma banda também soturna, mas com o som voltado para o indie rock. Nessa época eu tinha um videocassete que funcionava.

É outro clipe do qual não me esqueço: além de me lembrar até hoje do Fábio Massari, jornalista e a apresentador do Lado B, brincar com a crítica gringa, que rotulou a banda de “rock descafeinado”, gravei uma versão do vídeo diferente da que foi disponibilizada pelo guitarrista da banda na web.

Nunca mais vi a versão que registrei. A fita que gravei, infelizmente, oxidou. Um paradoxo: foi devido ao Bauhaus que conheci o trabalho de um grande divulgador da música popular brasileira: Fernando Faro, que faleceu em 2016, aos 88 anos. Enquanto esperávamos a reprise para rever Bela Lugosi’s Dead, eu e meu irmão assistimos o Ensaio, programa que Faro criou, pela primeira vez.

Achava que tinha conhecido o Bauhaus em 1989, mas então foi em 1990, quando o Ensaio foi criado, pelo que li num obituário de Faro. O curioso é que estávamos vendo só por ver, porque o convidado do programa era Caetano Veloso, que nós detestávamos – como os típicos moleques roqueiros da época e tal.

Hoje também gosto do trabalho de Caetano, mas não foi por causa daquele Ensaio que foi ao ar, nós gostamos mesmo é do programa. O formato de somente o artista ouvir a pergunta, mas o telespectador não, foi o que nos chamou a atenção. Faro era genial em registrar as impressões do artista enquanto a pergunta, que só podia ser imaginada por nós, era feita.

E verdade seja dita, o Caetano é ótimo contador de histórias. Nós dois adoramos um causo que ele contou do Tom Zé: o colega ficou com medo de voar, arrependeu-se quando era tarde e pediu para sair do avião, dizendo, segundo Caetano, “para essa caravela, por favor!”. Rimos à beça disso, nunca esqueci.

Continuei detestando a música do Caetano Veloso e 97,9% da MPB por um bom tempo, mas essa passagem e a exibição do clipe de Um Oh! e um Ah! no Som Pop, apresentado por Kid Vinil, me fizeram ver o Ensaio com o Tom Zé (exibido naquele mesmo ano de 1990, pelo o que descobri num DVD da Trama).

Naquela época também, creio que em 1991, li uma entrevista de Daniel Ash, guitarrista do Bauhaus, na Bizz. Ele declarou que estranhou num primeiro momento que gostassem tanto da banda em um país tão ensolarado como o Brasil, mas que pensou bem e entendeu que as pessoas se deliciam com o que os transporta para outros lugares e culturas; sendo o Bauhaus tão inglês, rescendendo a chuva e frio, nada mais natural.

Também acho. Agora também percebo que, ao começar um texto falando de Bauhaus e terminar celebrando o talento de Fernando Faro, acabo remetendo a uma das melhores características do Brasil, sem nenhuma novidade: esse caos antropofágico.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com